Com as palavras de ordem “a nossa luta é todo dia, meio ambiente não é mercadoria” e “se o PL ar a enchente vai voltar”, mais de 60 movimentos sociais realizaram, na manhã deste domingo (1º), ato unificado contra o Projeto de Lei 2159/2021, popularmente conhecido como “PL da Devastação”.
A proposta, que tramita no Congresso Nacional, flexibiliza o licenciamento ambiental e ameaça direitos socioambientais. Manifestantes criticaram a medida, que pode abrir caminho para grandes empreendimentos em áreas protegidas. A manifestação faz parte de uma agenda nacional que aconteceu neste final de semana.
O ato realizado em frente aos arcos do Parque da Redenção marca o início da Semana do Meio Ambiente no Rio Grande do Sul. Além das entidades em defesa do meio ambiente também participaram parlamentares e representantes de movimentos como a Frente Quilombola e o Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM) entre outros. Em vários momentos as falas lembraram os ataques à ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva.
A mobilização ocorre exatamente um ano após o desastre climático que devastou diversas regiões do estado e chama atenção para o desmonte da legislação ambiental em curso no país.

“A crise não é só climática, ela é ecológica. É uma crise moral e de consciência”, afirmou o presidente da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), Heverton Lacerda, ao destacar que os 10% mais ricos do mundo são responsáveis por mais da metade das emissões de gases de efeito estufa.
“A base da pirâmide, 50% da parte de baixo, só emite 7% dos gases de efeito estufa. Vejam: não temos um problema populacional, temos um problema de falta de consciência e excesso de consumo de uma parcela da população.” Segundo ele, o PL destrói a legislação protetiva e amplia os impactos da devastação no Rio Grande do Sul especialmente sobre o bioma Pampa, já atingido por alterações no Código Ambiental gaúcho.
Licenciamento, água e retrocessos
O presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Caí, Rafael José Altenhofen, criticou os projetos que ameaçam a gestão ambiental e hídrica. “Infelizmente, a representação da sociedade brasileira no Congresso parece não ter aprendido nada com a tragédia.” Segundo ele, projetos como o PL 2159 enfraquecem a legislação. “Aqui no RS, há propostas que desvinculam o licenciamento ambiental da outorga de uso da água, inviabilizando a gestão de estiagens e inundações.”
Altenhofen lembra que o estado já foi referência na gestão de recursos hídricos, mas hoje está atrasado. “Somos um dos poucos estados que ainda não implementaram a cobrança pelo uso da água nem criaram agências de bacia. Isso revela a força de interesses contrários ao desenvolvimento sustentável.”

Racismo ambiental e territórios tradicionais
O advogado da Frente Quilombola Onir Araújo afirmou que o projeto representa um ataque direto aos territórios tradicionais, citando o que vem acontecendo no Quilombo Kédi. “O PL expressa uma política supremacista colonial. Quilombos e retomadas indígenas estão sendo atacados por grandes empreendimentos imobiliários com aval do poder público. Já perdemos dois terços da nossa área ancestral.”
Da Lomba do Pinheiro, uma liderança Guarani da Tekoá Anhetenguá (Aldeia Verdadeira) destacou o papel ancestral de cuidado com a terra: “Nós, os Guarani, sempre respeitamos a terra. Sabíamos que o desmatamento traria desastres. O PL é uma condenação ao futuro da humanidade.” A fala foi seguida de uma bênção coletiva aos presentes.
Justiça ambiental e mobilização
Integrante do MAM, Meduza alertou sobre os efeitos da transição energética sem justiça social. De acordo com o militante é preciso fazer a discussão sobre a geração de trabalho em renda. “São José do Norte é um dos maiores produtores de cebola. Por conta dessa nova transição energética, o município vai ser dizimado. A produção de alimentos vai deixar de ser feita”, ressaltou. Ele defende que para convocar a população à luta, é preciso oferecer algo que engaje e traga esperança.
A especulação imobiliária também foi alvo de críticas e alerta durante as manifestações, tendo como exemplo os episódios envolvendo a Capital e o Litoral Norte. Em relação a Porto Alegre a integrante do Movimento Preserva Zona Zul Denise Moreira denunciou a pressão do setor imobiliário sobre áreas de preservação: “Há 20 anos resistimos à destruição de 12,9 hectares de mata nativa. A luta precisa estar nas ruas, nos ônibus, nos mercados. É a cidadania que mantém essas matas vivas.”
Sobre a situação do Litoral Norte a tesoureira da Agapan e integrante do Movimento em Defesa do Litoral Norte (MOV), Ana Lucia Vellinho DAngelo, relatou que a região também vem sendo alvo de empreendimentos de alto impacto. “O empreendimento imobiliário está acabando com o litoral, estão transformando tudo em condomínio. Lutamos também pelo reconhecimento do rio Tramandaí como patrimônio nacional e contra a instalação de um novo porto meridional (Porto Arroio do Sal) que entregaria o litoral ao lucro.” Nesta segunda-feira (2), às 18h, será lançado o Fórum contra o Porto de Arroio do Sal, na Sala Adão Pretto, na Assembleia Legislativa.

Representante da Associação Civil Lago Tarumã, Iko Feijó falou sobre a degradação da bacia do rio Gravataí e projetos de aterros sanitários na cidade de Viamão. “A nossa bacia do rio Gravataí, próximo ao centro de Viamão, está sendo destruída em toda a sua biodiversidade, a sendo água poluída, pelo fato do município ter interesses comerciais, e esse desmonte vem acontecendo em todas as nossas reservas”, declarou Feijó, chamando atenção também para a luta contra o aterro sanitário na região.
Conselheiro municipal de Desenvolvimento Urbano e Ambiental de Porto Alegre Felisberto Seabra Luisi alertou para o enfraquecimento de empresas públicas e defendeu a articulação popular. “A periferia precisa ser conscientizada. A luta contra o PL a também pela resistência ao novo Plano Diretor de Porto Alegre.”
Por sua vez a estudante de biologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) Natalie da Silva Paiva chamou atenção para os obstáculos à participação estudantil. De acordo com ela o aumento das agens dificulta a presença de estudantes em atos e mobilizações. “Mas estamos aqui por o à comida, educação, ar e água limpa. Queremos aproximar a universidade da cidade.”
Luta ambiental e políticas públicas
Durante manifestação a deputada estadual Sofia Cavedon (PT-RS) tratou da importância da mobilização diante do que classificou como “cinismo” de parlamentares que apoiam políticas predatórias. Citando Paulo Freire, ela defendeu o direito à “justa ira” diante da destruição ambiental e da negligência com as populações mais vulneráveis. “A terra está em transe, está queimando”, alertou, denunciando o negacionismo climático e a falsa ideia de que apenas os mais pobres sofrerão as consequências da crise.
O vereador Alexandre Bublitz (PT) destacou a relação entre crise ambiental e saúde pública, como o avanço da dengue e doenças respiratórias causadas pelo desmatamento e pelo sucateamento do saneamento. “A luta pelo Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae) é também uma luta ambiental”, disse. Lembrando a partida do fotógrafo Sebastião Salgado, o vereador defendeu a importância de ações de reflorestamento. “Salgado mostrou que é possível replantar a vida. Precisamos olhar para frente e pensar em como reflorestar o Brasil.”
Já a vereadora Juliana de Souza (PT) denunciou a “agenda ultraliberal” da Capital e ligou o racismo ambiental à precarização das periferias. “Tem gente em Porto Alegre que não tem água na torneira nenhum dia do ano. A justiça climática é uma luta diária.” Além disso, conforme destacou a parlamentar, conectar o mês de maio, marcado pelo primeiro ano da maior tragédia climática com a abertura da Semana do Meio Ambiente é altamente significativo.

O vereador Giovani Culau (PCdoB) afirmou não ser possível que o Brasil, que vai sediar a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2025 (COP30), aprove o maior retrocesso ambiental da história. Ele destacou que cerca de 200 hectares estão ameaçados por empreendimentos em regiões como Sabará, Restinga e Lomba do Pinheiro. “Não aceitamos o desmonte do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) assim como não aceitamos a destruição do Conselho Municipal do Meio Ambiente. Queremos desmatamento zero na Amazônia, e também em Porto Alegre.”
A vereadora Karen Santos (Psol) criticou a lógica de urbanização voltada à especulação e lembrou que há mais de 110 mil imóveis vazios na cidade. “Não precisamos construir mais, precisamos ocupar com dignidade. Está na hora de unificar as lutas contra a privatização, o desmatamento e o desmonte da escola pública.” Conforme enfatizou Santos é preciso formar a próxima geração que está vindo na perspectiva de luta. “Só a representatividade dentro do Parlamento não está dando certo.”
Paulo Brack, vereador e ambientalista do Psol, afirmou que o PL ignora mudanças climáticas, povos indígenas e espécies ameaçadas. “Estamos no meio de uma guerra contra o grande capital. Essa lei joga nas mãos de estados e municípios um poder que deveria ser nacional. O ar, os rios, o Pampa, nada disso têm fronteiras municipais.”
No plano federal, a deputada Maria do Rosário (PT) ressaltou a articulação entre crise climática, ética e direitos humanos, criticando o modelo agrícola baseado em commodities e a marginalização de lideranças ambientais como Marina Silva. “Estamos aqui pelas florestas, pelas águas, mas também pelos povos indígenas e quilombolas, que são quem de fato protegem a vida”, declarou.
Para a deputada federal Fernanda Melchionna (Psol) o PL 2159 é uma expressão institucional do negacionismo climático da extrema direita. “Nós temos que exigir que esse projeto pare de tramitar, que vá para a lata do lixo da história. Precisamos enfrentar com muita força o negacionismo climático e neoliberal que são expressos pela extrema direita.”
O ex-ministro e deputado estadual Miguel Rossetto (PT) defendeu a mobilização popular como única forma de barrar retrocessos: “Estamos defendendo a vida de uma cidade, de um país, de um planeta. Esse projeto disputa para ver quem destrói mais, ao municipalizar o que deveria ser proteção nacional”. Para ele só a mobilização popular é capaz de barrar projetos destrutivos como a tentativa de privatizar o Parque da Redenção.

Resistência como projeto de futuro
Frente a um cenário de retrocessos legislativos, agravamento da crise climática e intensificação da desigualdade socioambiental, as falas apontam que o PL da Devastação não é apenas uma proposta legislativa: é o símbolo da disputa entre dois projetos de mundo, um baseado na destruição e outro na preservação e no bem comum. Rebeca Peres da Silva, do movimento Laudato Si, ecoou as palavras do Papa Francisco: “Tudo está interligado. Viva o povo organizado, viva os pequenos organizados. Avante na luta pela vida!”
Geógrafa e integrante da Convergência Socioambiental do Fórum Social Mundial Lucimar Fátima Siqueira destacou a importância da mobilização popular e da retomada das conferências do meio ambiente como espaços de construção democrática. “A democracia não está dada. Ela se constrói no cotidiano, nos territórios, e é atacada sempre que se desmontam os espaços de participação.”
Segundo ela, o desastre climático agravou um cenário já preocupante. “O ecossistema foi profundamente alterado. Sementes, plantas, projetos de regeneração foram arrasados. O RS tem vocação para a agroecologia, mas sofre com o uso indiscriminado de agrotóxicos.”
A programação da Semana do Meio Ambiente envolve mais de 60 entidades e inclui debates com acadêmicos, ações em escolas e hortas comunitárias, entrega de uma carta de reivindicações à Câmara de Vereadores e atividades em bairros atingidos pela enchente, como a Praça Oliveira Rolim, no Sarandi. Também será lançada a Caravana dos Catadores, que percorre cidades promovendo debates sobre reciclagem e valorização da profissão de catador.
Entre os atos dessa semana está a vigília silenciosa na Praça da Matriz, organizada pelas entidades ambientalistas e ativistas, nesta quinta-feira (5), data que marca o Dia Mundial do Meio Ambiente, além do Lançamento do Festival de Oxum, na Ponte de Pedra/Açorianos, centro histórico da Capital, a partir das 17h. Também na quinta, em Viamão, na Escola Estadual Setembrina, às 19h, será realizado um ato contra o PL.
“A educação ambiental e a governança democrática são centrais. Trinta por cento das propostas da Conferência Nacional do Meio Ambiente tratam disso. Não dá para resolver tudo em um dia. Por isso, uma semana cheia de ações é fundamental”, concluiu Siqueira.
