Com a frase célebre de Chico Mendes, “ecologia sem luta de classes é jardinagem”, foi realizado na última sexta-feira (6), em Porto Alegre, um cinedebate com a exibição do documentário Empate, dirigido por Sérgio de Carvalho. O filme recupera a memória do seringueiro, sindicalista e ambientalista assassinado em 1988, e destaca os companheiros que atuaram com ele na resistência pacífica à destruição da floresta amazônica.
A sessão integrou a programação da Semana do Meio Ambiente em Luta: Território, Clima e Justiça, e foi seguida por um debate com o professor de Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), Dilermando Cattaneo; a representante do Ministério da Cultura (MinC) no Rio Grande do Sul, Mari Martinez; e a cientista social Ana Berni. O debate foi organizado pela Casca Socioambiental, Cúpula dos Povos e Sindicato dos Bancários de Porto Alegre e Região (SindBancários).
O professor Cattaneo destacou o papel central do Acre na história dos movimentos socioambientais da América Latina. Segundo ele, a criação das reservas extrativistas, inspiradas na ideia de uso coletivo da terra, foi influenciada pela atuação da antropóloga Maria Letícia Leite na Amazônia Ocidental, nas décadas de 1970 e 1980. “Ela ajudou a formular a ideia de uso coletivo da terra, inspirada nas reservas indígenas previstas pela Constituição de 88.”

Cattaneo também criticou a visão eurocentrada sobre o clima gaúcho. “Temos muito mais da Amazônia do que da Europa. A umidade é a marca do nosso clima, não a neve. Se não fossem as castanheiras, a gente diria que estava em Alegrete”, afirmou, lembrando de viagens pela BR-364, no Acre.
Ele traçou ainda um panorama histórico da formação do território acreano, desde a compra da região da Bolívia até a instalação dos seringais. “O seringueiro era quase um escravizado. E quando os seringalistas fugiram com a decadência do látex, quem ficou teve que aprender a conviver com a floresta e com os povos indígenas.”
Chico mendes conectou luta pela terra e ecologia
Foi nesse contexto que emergiu Chico Mendes, filho de Soldado da Borracha, alfabetizado por um professor ligado à Coluna Prestes. “Esse professor ensinou não só a ler e escrever, mas também sobre luta de classes e sindicalismo.” Daí nasceu o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri e os “empates” — ações diretas e pacíficas para impedir o desmatamento.
Chico Mendes, segundo Cattaneo, teve a “sacada” de conectar a luta pela terra com o discurso ecológico internacional, tornando-se porta-voz global da causa. Mesmo com projeção internacional e escolta federal, foi assassinado em dezembro de 1988. “A toalha e as marcas de sangue ainda estão lá, na casa dele, em Xapuri”, lembrou.
O professor também destacou o legado do geógrafo Carlos Walter Porto-Gonçalves, amigo pessoal de Chico Mendes, que cunhou o conceito de “geo-grafia”, um modo de marcar e compreender o território a partir das experiências das comunidades.

Da floresta à enchente: devastação sem fronteiras
Cattaneo fez um alerta: os efeitos da devastação amazônica chegaram ao Sul do país. “A enchente histórica que tivemos no Rio Grande do Sul tem relação direta com o avanço do agronegócio no Cerrado e na borda sul da Amazônia. A água que caiu entre 27 de abril e 19 de maio era para ter caído na borda norte do Cerrado. Mas, por conta da mudança radical no uso do solo, ela vem no jato de baixos níveis, que forma uma rampa, uma frente estacionária, um bloqueio atmosférico, e cai sobre nossas cabeças.”
Dados do Relatório Anual do Desmatamento (2024), feito pelo Mapbiomas, revelam que mais de 1,24 milhões de hectares foram desmatados no país de janeiro a dezembro do ano ado, a maior parte (83%) ocorreu no Cerrado e na Amazônia. No cerrado foram quase 652,2 mil hectares derrubados. O documento aponta que o desmatamento por pressão da agropecuária (agronegócio) está associado a mais de 97% de toda a perda de vegetação nativa no Brasil nos últimos seis anos.

Para Cattaneo, a crise ambiental não pode ser dissociada das disputas fundiárias. “Não dá para pensar a luta ambiental sem pensar a luta por terra e território”, afirmou. “A lógica da devastação não conhece fronteiras. O que vemos no Sul hoje é resultado de uma mesma política: o desmonte do território como forma de desenvolvimento. Pensar em diferentes escalas, sem abdicar da luta pela terra e pelo território, é uma questão fundamental para quem é ambientalista como nós.”
Cultura e meio ambiente: resistência e reencantamento
A representante do Ministério da Cultura, Mari Martinez, destacou o papel da cultura na articulação entre justiça ambiental e justiça social. “O papel da cultura é provocar essa reflexão, envolver a sociedade nesse debate urgente sobre os nossos modos de vida e sobre que desenvolvimento realmente queremos. Como traz Ailton Krenak, quando fala sobre ideias para adiar o fim do mundo, essa relação entre preservação ambiental e construção de outra sociedade é fundamental.”
Ela evocou também o pensamento do ex-ministro Gilberto Gil para enfatizar a potência da diversidade brasileira. “Já diria Gilberto Gil: a biodiversidade cultural do nosso país é a principal potência do Brasil. É fazer a sociedade se reconectar com a terra, com os saberes ancestrais. A cultura, que é essa vitória da palavra, da poesia, tem esse poder de reencantar a humanidade, para que ela se conecte de novo com esses valores e atue de forma cidadã para essas transformações do mundo.”
Martinez alertou ainda para os riscos da mercantilização da cultura: “Se a cultura não tiver esse recorte da resistência, de refletir o nosso mundo, de trazer essa voz para a transformação, ela a a ser uma cultura da indústria, que massifica, que homogeneíza. E a gente está lutando contra essa monocultura, em defesa da biodiversidade”.
Foi nesse ponto que ela citou o pensamento do líder quilombola Bispo. “Qual desenvolvimento? Como diria o líder quilombola Bispo, é isso que precisamos debater. E a cultura tem esse papel de nos colocar essas perguntas.”
Resistência cultural
Sobre o documentário Empate, Martinez afirmou que o filme revela como a resistência de Chico Mendes era também cultural. “A cultura também é essa resistência pacífica, que se manifesta pela arte, pela palavra, pela poesia, e que nos convida a retomar o sentido da vida.”
Ela lembrou que a mobilização dos empates tinha como base a arte. “O que chamava o pessoal para o empate? Era a canção. Eles estavam todos trazendo aquele hino da reforma agrária. Se reuniam, debatiam política, mas também festejavam, tocando gaita, cantando juntos. A cultura tem esse potencial de resgatar a cidadania.”
Para ela, resistir também é reconectar-se com o essencial. “A gente vive numa sociedade que quer nos ver como consumidores, e isso tira o sentido da vida. Estamos todos doentes, ativamente destruindo o meio ambiente. E a cultura e o cinema, essa luta em defesa do meio ambiente, querem nos reconectar e nos colocar como cidadãos.”
Aprendizado
A cientista social Ana Berni expôs o desejo de que tenhamos a força, a potência e a coragem dos seringueiros para seguir com os empates em situações que tem acontecido em Porto Alegre. Ela citou os casos que impactaram a Floresta do Sabará; a construção do Alphaville, em área de proteção ambiental da Restinga; as marinas e mansões da região das ilhas.
Também chamou atenção para as privatizações como da gestão dos resíduos sólidos de Porto Alegre; na privatização do Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae); ou nas retomadas indígenas que estão em curso”. E acrescenta: “Quem não lembra dos tiros disparados contra a aldeia Mbya Guarani da Ponta do Arado, em 2019”.
Para ela o fim da separação entre natureza e sociedade não é uma escolha teórica. “Enquanto acharmos aceitável a exploração da natureza em nome do lucro, assim como a exploração do próprio ser humano, não haverá futuro viável. Não é possível crescermos infinitamente, aumentando exploração de recursos (humanos e naturais), visando aumento de lucro, e chamarmos isso de sustentável.Neste sistema, no mundo moderno colonial capitalista, não há sustentabilidade possível. Não é a forma de exploração que precisa mudar: é o sistema”, conclui.
